quarta-feira, 21 de janeiro de 2015


Jovens que se cortam


cortes rock


É cada vez mais frequente a procura por ajuda profissional, geralmente solicitada pelos familiares, para o atendimento de casos em que jovens têm deliberadamente provocado cortes em seus pulsos, braços e até nos rostos. Geralmente são meninas, adolescentes, trazidas pelos pais, que ficam aterrorizados com a cena e não sabem o que fazer.
Além dos cortes, a presença de sintomas como anorexia e bulimia são comuns, além de algumas características subjetivas, como o isolamento, a necessidade de chamar a atenção e a sensação de ser incompreendida. É comum não haver ânimo para ir à escola, não ter apetite e não ter vontade de sair de casa. Questões muito presentes e pertinentes na adolescência, mas que nestes casos aparecem de forma exacerbada e é muitas vezes percebida como uma depressão.
Os cortes geralmente são “a gota d’água”, o estopim que sinaliza à família que é preciso ajuda. É importante não perdermos de vista que alguma mensagem está contida nestas ações; podemos considera-las como a expressão de conflitos inconscientes. É interessante notar como, em muitos casos, as ações parecem ser dirigidas às mães, como uma tentativa de atacá-las, assustá-las e, assim, envolvê-las.
A insensibilidade corporal é algo notável nestes casos, e está ligada a um bloqueio, em termos psicanalíticos, da circulação da libido. Isto fica claro quando, durante os atendimentos, o discurso da paciente se volta a um passado impossível e circular, marcado pelo sentimento de autorrecriminação e culpa (esta situação é bem ilustrada pelo relato de uma paciente, que se sente culpada pela separação dos pais, quando tinha 3 anos de idade).
Uma abordagem psicanalítica da questão pode nos conduzir a uma possível compreensão do que está em jogo nestes casos. Geralmente as críticas a si mesma, ao seu ego, disfarçam um ataque a uma pessoa amada que foi perdida. O que bloqueia a libido é que a energia contida na relação com esta pessoa, ao invés de ser gradualmente investida em outra (o que seria considerado um luto), esta energia é direcionada ao próprio ego, sem ter nenhuma função, realizando apenas uma identificação com a perda. Neste momento, ocorre uma divisão (clivagem) no ego, e ele passa a ser criticado pelo superego como se representasse a pessoa perdida. Desta forma, os cortes podem ser compreendidos como uma ação que é capaz de fazer um duplo ataque: ao próprio ego, que está identificado com a perda da pessoa, e à própria pessoa perdida, como mensagem indireta.
Em outras palavras, quando perdemos alguém de muita importância em nossas vidas, seja por morte, separação ou outra razão, tendemos a incorporar alguns aspectos, trejeitos e características da pessoa perdida. É comum, por exemplo, uma pessoa que tenha perdido um familiar querido, vestir roupas do falecido. Na situação de luto, ou seja, não patológica, fazemos isso de forma transitória, e pouco a pouco voltamos à vida, criamos novos laços, novos vínculos emocionais. Em alguns casos, essa situação se cronifica, é como se não nos separássemos da pessoa que perdemos, internalizamos ela e “brigamos” internamente com ela por “ter nos abandonado”. Ou seja, o que parece uma auto agressão, é muitas vezes a agressão a esse outro que já se foi e não aceitamos perder.
Mais do que entrar em pormenores teóricos, tentamos aqui explicitar um dos sentidos que o ato de se cortar pode possuir. Neste caso, o jovem que se corta estaria passando por um estado de melancolia de forma que não consegue ligar-se em nada, pois toda sua energia está investida em si mesmo. Com este hiperinvestimento de libido sem ligação no ego, cria-se um estado de angústia permanente, trazendo a sensação de vazio e de não possuir valor algum.
Outro aspecto importante tem haver com os limites: limites do si-próprio, limites do corpo. Quando alguns jovens cortam suas próprias peles, ainda que o ato envolva dor, permite a eles sentirem seus contornos, seus limites, sua unidade corporal. Quem olha de fora, os vê como uma pessoa inteira, mas a experiência desses jovens com relação à si próprio é muitas vezes de fragmentação ou indiferenciação. Os cortes  permitem a eles “sentir na pele”  que estão vivos. Uma fala comum destes adolescentes é: “Eu me corto, pois é a única forma de sentir algo”. 
Vale ressaltar que esta interpretação não é uma regra e cada caso pode apresentar variações e sutilezas infindáveis. No entanto, como esquema genérico de compreensão, pode nos dar algumas pistas na tentativa de compreender este aparente enigmático ato de se cortar.
Sabemos que é muito ruim sofrer e não saber o  motivo.  Sempre que conseguimos uma explicação para nosso sofrimento a tendência é que tenhamos um alívio, começamos a entender do que se trata e a visualizar saídas. O que acontece com esses jovens, muitas vezes, é que o sofrimento está descolado de qualquer significado ou narrativa que dê um contorno à dor; e os cortes na pele, embora tragam dor, ajudam a “lembrá-los” quais são os contornos de seu corpo. O trabalho psicoterapêutico ajuda, num primeiro momento, a construir contornos psíquicos, explicações subjetivas para um sofrimento que não está podendo ser colocado em palavras. Portanto, pensamos que no momento em que este jovem passe a falar e elaborar algo sobre seu sofrimento, provavelmente haverá uma diminuição gradual da necessidade de se cortar.    
Nestes casos a indicação de medicações pode ser bastante útil ao ajudar a aliviar sentimentos de angústia, tristeza e ansiedade; no entanto, os remédios não atingem a raiz principal da questão, tornando  necessário um profundo trabalho analítico, que irá percorrer os motivos inconscientes e as identificações realizadas, buscando a liberação da libido e a retomada da potência vital.

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